terça-feira, 22 de maio de 2012

A percepção geográfica

“Foi lá, em São Tomé, com quase 24 anos de idade, que, por primeira vez, tive verdadeira consciência da minha profissão e também da minha pessoa e do que eu podia oferecer no futuro”. Artigo de Xavier Muñoz-Torrent.

A percepção geográfica

Xavier Muñoz-Torrent, geògrafo

Na minha primeira viagem a São Tomé tive um shock paisagístico. Na memorável gravana de 1986, acordava transpirado nessas quentes noites de Uba-Budo, com os colegas de quarto ao meu redor, a dizerem que eu discursava entre sonhos “ter perdido a minha percepção geográfica”! Ainda lembro as caras de admiração da Núria e do Pere sobre mim, e também a minha surpresa por ter exteriorizado do meu subconsciente impressões tão estranhamente transcendentais. Mas o shock tinha sido de tais proporções como para mexer as minhas emoções, mesmo em sonhos.

Na realidade, essa estada em São Tomé modificaria profundamente os meus padrões de entender o mundo. Aquele lugar, ainda que pequeno, para mim seria imenso, desbordante, em tempo, em espaço, em grandeza de humanidade. Como escrevi nessa altura para um amigo, aquele país estava a ser uma das “dobradiças da minha vida”. Foi lá, em São Tomé, com quase 24 anos de idade, que, por primeira vez, tive verdadeira consciência da minha profissão e também da minha pessoa e do que eu podia oferecer no futuro.

Antes de empreender a viagem, tinha lido com paixão algum dos trabalhos de Joan Nogué (1983) sobre a importância da percepção dos bosques na configuração de um espaço social, que foram as primeiras escritas da emergente Geografia Humanista que me caíram nas mãos. Nogué falava das diferentes características do mato como elemento paisagístico, inexistentes nos espaços abertos, que lhe outorgava uma categoria superior aos outros elementos da geografia, porque criava sensações, como mistério, medo, solidão, magia, feitiço; um conceito daquilo selvagem, da clandestinidade, do que fica fora da lei; “o limite entre a ordem humana, expressão da ordem divina na terra, e o caos demoníaco da natureza”…

De fato, é o palco do desconhecido, do indômito, do incerto, do cambiante. Também o professor Jaume Vicens-Vives já tinha advertido no seu Tratado General de Geopolítica (1956) que os bosques foram um dos limites que mais angustiaram a concepção espacial humana. Com tudo, eu não fazia idéia do que isso significava na prática, e não dava importância ao principal caráter da paisagem que evocava Francisco Tenreiro na sua monografia sobre a Ilha de São Tomé (1961), provavelmente por ter eu uma idéia muito inexata do que era um bosque ou do que era uma plantação extensiva numa região equatorial.

Lembro-me da minha primeira visão do mato desde a varanda da Casa da Administração. Chegamos de noite cerrada à sede de Uba-Budo e, desde o aeroporto até lá, apenas tínhamos visto sombras fantasmagóricas, enquanto cruzávamos o que, aos nossos olhos, pareciam quilômetros e quilômetros de selva densa a ambos os lados de uma estrada terrivelmente empoeirada. Aquela manhã do fim de Julho, o dia tinha amanhecido entre nevoeiros, mas, ao canto do galo e ao toque do sino, a vida tinha explodido de novo na roça. E eu não queria perder-me aquele primeiro espetáculo.

Assim que, mesmo sem esperar a vestir-me, precipite-me a debruçar na sacada. Em baixo, no terreiro, todo se mexia. Uma turma de crianças, ao ver-me, cumprimentou-me a coro: “Bom dia senhor, bom dia excelência!”. Os miúdos estavam a desenvolver atividades tomando a amplia escadaria da casa como anfiteatro para o magistério de uma moça bastante nova que parecia estar ao cargo dessa pequena multidão. Ela também cumprimentou-me e as crianças riram e fizeram comentários divertidos sobre a cor das minhas pernas, quase em voz alta. A minha resposta foi um longo sorriso que, ao levantar a vista além da zona construída, virou boca aberta: todo era verde, um manto de verde intenso, um infinito vegetal que cobria a paisagem toda e nos rodeava! Fiquei atônito de tanto verdor.

Nunca na minha vida tinha visto tal explosão de natureza. Aquele não era o meu verde-oliveira mediterrâneo; era verde vivo, intenso e orvalhado, salpicado, às vezes, levemente, de flores vermelhas e amarelas e frutos que ainda davam mais contraste a uma imagem de frescor. E as crianças iam a amenizar as imagens com alegres canções de escola. Sensacional –pensei–, estou a descer de uma nuvem, estou no paraíso!

Desde um extremo da varanda, outra moça me estava a vigiar. Adverti a sua presença por outro rir indissimulado. Voltei-me e lá estava por acaso uma das mulheres mais belas que conheci na vida (ou isso é o que nessa altura me pareceu): comprida, delgada, elegante, pretíssima, com as melhores formas e proporções, com o melhor sorriso, com uns olhos grandes que falavam solzinhos. De fato, Domingas transpareceu ser ainda mais bela de caráter, de inteligência e de sentimentos. Presagioso início para uma longa e alegre estada. Mais tarde, reconheci dela a bonita voz que entoava canções de Roberto Carlos no trajeto de carrinha desde o aeroporto, que tanto nos tinha ajudado a relaxar a excitação da viagem (depois do nosso penoso trânsito por aquela Luanda afligida pela guerra). Foi aquela tonga a que me convidou com outros rires e olhares críticos a vestir-me adequadamente para, antes do pequeno almoço, dar uma volta pelos arredores da sede. Aqueles rires e aqueles olhares mesmo acariciavam, tinham o feitiço de despir pouco a pouco a minha alma para desejar com veemência beijar esse sorriso e esses olhares e o seu corpo todo.

Da mão dessa fada entrei na magia da floresta são-tomense, nos campos de cacau que se estendem baixo os enormes ocás, as erguidas amoreiras, as fruteiras, as jaqueiras, que tapavam o céu e criaram para mim uma sensação única de frondosidade. Mesmo de um perfume especial, forte frutado, mistura de óleo de palma e cacau pronto a fermentar. Lá em baixo, no matagal cerrado, havia um microcosmo de humanidade, uma atividade industriosa, de gente que trabalhava a terra, a capinar, a tirar e a quebrar cacau, e não por isso abandonava a cortesia do rápido cumprimento e da fácil conversa. Aquela floresta tinha vida dentro, uma parte humanizada, mas também uma parte brava com os perigos que escondia. Apesar da mão do homem, não deixava nem deixa de ser mato: “Cuide-se da cobra preta, do mosquito, cuide-se da lagaia e dessas formigas chatas que mordem; mas também guarde-se dessas raparigas tongas de pele suave, as que tem mais feitiço e fazem perder a cabeça!”. E decerto eu a perdi.

A combinação dessa exultante frondosidade, que mudava com cada rajada de vento, com a lentidão que obrigavam as comunicações terrestres, e, muito especialmente, a pacata filosofia de vida dos insulares, fez-me perceber o espaço de outro modo, despercebendo-o, engrandecendo-o muito mais do que era na realidade. De fato, para ir de carro até São João (30 km), sorteando buracos, torrentes, desprendimentos e vegetação caída, a viagem tomava ao redor de 3 horas de relógio, quase uma eternidade de saltos e balanceios, e, ao volver a vista atrás, o ar tinha mudado completamente a paisagem, como ondas no mar, sem deixar aos meus olhos qualquer rasto de referências anteriores. A percepção, pois, era outra e eu no fundo estava a perder a minha ou, o que é mesma coisa, a ter outra totalmente diferente em cada momento, com certeza, por influência da imagem e dos tempos no processamento mental da escala geográfica. E pensei “que grande é esse país que se enche à vista dos forasteiros, que nos engana e enfeitiça!”… E olhei à moça e pensei que ainda estava a viver numa fábula surrealística, e ela não compreendia como o senhor geógrafo tinha perdido esse sentido da medida da terra;… e talvez seja por isso que ela fosse tão especialmente atenciosa comigo.

Essa percepção engrandecente ainda cresceu cada dia que eu passava naquele país, naquelas roças. Foi pior quando nos internamos no mato indômito, no obô, na nossa fracassada ascensão ao Pico desde Diogo Vaz (via que desde então me parece inatingível) e também na excursão à Lagoa Amélia ou na incursão nos extensos campos de palmeira dendê, desde Ribeira Peixe ao pé do eretíssimo Cão Grande, onde mesmo uma colônia de macacos nos atacou com um implacável bombardeio de frutos e sementes. Aos nossos olhos era impossível que todas essas maravilhas da natureza estivessem num território tão pequeno. Mas é assim: São Tomé é uma caixinha cheia de grandes surpresas.

Mesmo outros amigos nos falaram de histórias de bruxas e curandeiros, escondidos em cavernas ou palhotas no mais recôndito do mato onde fazem os seus sortilégios e administram as suas escuras artes. Também de estranhos gênios do bosque, os gugus, que fazem rico a quem os guarda em casa. Também da imensa riqueza em plantas medicinais, folhas, paus e cascas, que se encontram lá e que permitem tanto as mais diabólicas drogas para montar santos ou criar os mais letais venenos, como os mais eficazes remédios de cura, de fertilidade ou para atingir maior força sexual. É também no mato que se encontravam os fugidos da justiça, e foi desde lá que o escravo Amador organizou as mais terríveis ofensivas contra a colônia e onde Yon Gato apanhou o seu devason. É também espaço dos mitos iniciáticos dos angolares nos seus primitivos quilombos

Rendi-me frente ao grande ocá perto da barragem de Guegue, onde –dizem- moram as bruxas; de joelhos sobre a terra batida, sem deixar a mão protetora da Domingas, para desculpar-me pelos meus atrevimentos em assaltar esse país com a minha incipiente ciência, com os meus preconceitos europeus que não faziam mais nada que fechar a mente a outras perspectivas de ver a realidade. Ganhei perspectivas, ganhei saberes, ganhei humanidade e paixão, mas fiquei para sempre enfeitiçado deixando lá a minha percepção geográfica.

Esse engano na percepção das magnitudes e decerto um efeito que sofrem os visitantes a essas ilhas exuberantes e mesmo que permite acreditar aos próprios são-tomenses que o seu país é maior, incomensurável, que tem vida própria; mesmo que não é realmente uma ilha, que é uma alcatifa mágica pronta a voar. E por muito que estudei os mapas, por muito que andei pelo mato e as roças, eu nunca perdi essa percepção amplificada do território, que ainda tem-se manifestado na minha paixão por esse país, por essa humanidade, e por esse tímido rir (indiscreto) da Domingas, e também pelas suas inconsoláveis lágrimas na minha partida, cravadas como farpas desde então no meu coração.

Fonte: http://www.telanon.info/cultura/2012/05/22/10434/a-percepcao-geografica/. Acessado em 22/mai/2012.

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