Por LĂșcio Lambranho*.
O Governo Federal pediu o bloqueio de bens do Projeto Tamar e o cancelamento do certificado de filantropia. Motivo: a fundação criada para proteger as tartarugas pagou para que um integrante do Conselho Nacional de AssistĂȘncia Social (CNAS) e um advogado fraudassem a concessĂŁo do documento que dĂĄ Ă entidade o direito de ser filantrĂłpica. Houve atĂ© falsificação de provas.
As tartarugas voltando para o mar apĂłs a
desova, salvas do risco de extinção, são a marca registrada do projeto
Tamar desde 1980. Mas a imagem positiva de preservação da natureza é bem
diferente dos fatos narrados em uma ação produzida pela Advocacia Geral
da UniĂŁo (AGU).
O processo, que tramita na Justiça
Federal, revela fraudes e irregularidades na concessĂŁo do tĂtulo de
entidade de assistĂȘncia social, o que daria ao Tamar uma isenção
milionĂĄria de impostos.
No documento, a AGU pede o bloqueio de
bens, o cancelamento do certificado de filantropia e a condenação da
entidade por improbidade administrativa. A ação tem como base as
conversas telefÎnicas gravadas e documentos apreendidos na Operação
Fariseu, investigação iniciada ainda em 2005 por PolĂcia Federal,
Receita Federal e MinistĂ©rio PĂșblico Federal.
A apuração levou à prisão dois
consultores contratados pelo Tamar ainda em março de 2008. Agindo nos
bastidores do Conselho Nacional de AssistĂȘncia Social (CNAS), o advogado
Luiz Vicente Dutra foi flagrado pelas escutas dizendo que estava “com
quatro conselheiros do CNAS” e ia “vender as tartarugas”.
O outro contratado pela entidade foi o
entĂŁo suplente de conselheiro do CNAS, Euclides da Silva Machado. Uma
das principais provas da acusação é uma carta enviada por ele para o
então diretor da Fundação Tamar, Victor Partiri, aonde o conselheiro diz
que “o Tamar por si sĂł, nĂŁo pratica comprovadamente assistĂȘncia
social”.
No mesmo documento, o conselheiro då a dica de como deveria ser a transformação para conseguir o certificado.
O primeiro ponto foi incluir as visitas
dos turistas Ă s bases do projeto no litoral brasileiro como atendimento
gratuito para fins de assistĂȘncia social. AlĂ©m disso, foi criada uma
manobra contĂĄbil onde passaram a considerar como gratuidade todas as
despesas com mão-de-obra das rendeiras contratadas pela fundação para
confecção dos suvenires.
Para os órgãos de fiscalização, a
decisĂŁo dos conselheiros do CNAS era tĂŁo absurda que em menos de um mĂȘs a
Receita Federal encaminhou um recurso ao MinistĂ©rio da PrevidĂȘncia
Social para pedir o cancelamento do ato.
Nos trĂȘs anos (2003 a 2005) em que o
Tamar pedia para que fossem consideradas suas atividades de assistĂȘncia
social, a entidade faturou mais de R$ 31 milhÔes com venda de brindes
com a marca do projeto. SĂł este fato, segundo a Receita, jĂĄ afastava
qualquer possibilidade da fundação ser considerada filantrópica, pois a
maior parte do dinheiro não foi aplicado em açÔes sociais.
O CNAS nĂŁo tinha corpo de auditores para
analisar livros contåbeis das instituiçÔes. Concedia titulaçÔes com
base no que era apresentado pelas entidades. Além disso, o próprio
conselheiro Machado, que deu as dicas para a obtenção do certificado de
filantropia, firmou um contrato com o Tamar, contrariando frontalmente o
conselho de Ă©tica do CNAS. Os documentos mostram que Machado recebeu,
por meio de sua empresa,
R$ 29.400 do Tamar.
Isenção generalizada
Com o certificado de assistĂȘncia social,
hospitais, escolas e faculdades privadas obtĂȘm vantagens fiscais que as
livram de pagar milhĂ”es aos cofres pĂșblicos, na forma de tributos.
O principal dos benefĂcios Ă© isenção
total da cota patronal do INSS. De acordo com as investigaçÔes do
governo e do MinistĂ©rio PĂșblico, somente em 2007 a isenção concedida a
sete mil entidades deu um prejuĂzo aos cofres pĂșblicos de R$ 2,1
bilhÔes.
As fraudes sĂŁo gigantescas e antigas. A
força-tarefa montada para apurar os crimes revisou isençÔes concedidas
desde o final dos anos 90.
A Receita e o INSS dizem que as
entidades beneficiadas nĂŁo tĂȘm o direito de requerer o certificado de
assistĂȘncia social, pois nĂŁo cumprem as 11 obrigaçÔes necessĂĄrias para a
obtenção do registro. A principal delas é a que obriga as instituiçÔes a
oferecem, pelo menos, 20% de serviços gratuitos nas åreas de educação e
assistĂȘncia social e 60% na ĂĄrea de saĂșde. Os percentuais sĂŁo
calculados sobre a receita bruta das entidades.
Fraudes ou inclusão de serviços, que não
sĂŁo considerados filantropia para se atingir esses percentuais, sĂŁo
comuns entre os processos investigados, como foi o caso do Tamar.
O projeto ambiental e as supostas
entidades de assistĂȘncia social jĂĄ tinham sido flagradas pela Receita
Federal, que ainda na década passada pediu o cancelamento dos
certificados.
As entidades acabaram sendo anistiadas
em 2009, graças a polĂȘmica MP 446/2008, apelidada no Congresso Nacional
de “MP da Pilantropia”.
A MP acabou sendo devolvida ao
Executivo. Por isso, a ação contra a fundação ambiental também demonstra
que hĂĄ uma contradição jurĂdica no governo federal. Parecer dessa mesma
AGU considera que apesar de ter sido rejeitada por deputados e
senadores, os efeitos da MP continuam valendo.
AGU preferiu nĂŁo comentar a decisĂŁo de
processar o Tamar e ao mesmo tempo garantir anistia para outras
entidades investigadas pela Operação Fariseu. Alega que não pode se
manifestar, pois o processo estå sob segredo de Justiça.
Priscila Wiederkehr, diretora
administrativa do Tamar, informou que o projeto nĂŁo gozou de imunidade e
que a Receita Federal negou o pedido de isenção. A entidade não
respondeu as questÔes sobre o processo enviadas pela reportagem, mas
protocolou no final de 2010 um pedido para renovar sua certificação.
O advogado Luiz Vicente Dutra, flagrados
pelas escutas da PF, disse que “todas as acusaçÔes sĂŁo infundadas e
foram obtidas de forma ilegal por meio de escutas”.
A reportagem nĂŁo conseguiu contato com o
ex-conselheiro suplente do CNAS, Euclides Machado, nem com seus
advogados. Em suas alegaçÔes no processo, ele diz que nunca escondeu o
fato de prestar serviços ao Tamar e que nunca votou nem participou de
pareceres para entidades com as quais mantinha contratos. O CĂłdigo de
Ătica do CNAS diz que “Ă© vedado prestar serviços de consultoria
remunerada nos processo de registro e certificação das entidades de
assistĂȘncia social, concomitantemente com o exercĂcio da função de
conselheiro”.
Pilantropia
Baixada a poeira da crise polĂtica
criada pela devolução da MP, o governo conseguiu aprovar um projeto que
afrouxou ainda mais as regras. Trata-se da lei 12.101/2009. No artigo
31, a União decidiu que o direito à isenção das contribuiçÔes sociais
poderå ser exercido pela entidade a contar da data da publicação da
concessão de sua certificação.
Com a nova regra, nĂŁo existe mais a
necessidade de que a entidade peça o benefĂcio em processo
administrativos na Receita Federal e até evita que ela entre com açÔes
na Justiça. Ou seja, mesmo sob suspeita, as entidades supostamente
filantrĂłpicas ganharam mais um benefĂcio sem que se tenha causado nenhum
alarde na imprensa e sem nenhuma implicação polĂtica como teve a MP
446/2008.
Acreditando agir acima de qualquer
suspeita, o conselheiro Euclides Machado representava uma obra social
destinada a ajudar idosos e doentes em BrasĂlia. Outros conselheiros
envolvidos nas denĂșncias tambĂ©m atuavam como representantes de entidades
assistenciais e religiosas. Por isso, a ação da PF foi batizada de
“Fariseu”, por considerar que os envolvidos agiam como os “antigos
indivĂduos que aparentam santidade, mas nĂŁo a tĂȘm”.
A inspiração dos policiais federais vem
da passagem bĂblica: “Ai de vĂłs, escribas e fariseus, hipĂłcritas! Pois
que sois semelhantes aos sepulcros caiados, que por fora realmente
parecem formosos, mas interiormente estĂŁo cheios de ossos de mortos e de
toda a imundĂcia”. A denĂșncia contra a Fundação PrĂł-Tamar revela o lado
até então obscuro de uma entidade considerada como um caso de sucesso
de ação ambiental no Brasil, mas que parece ter sido seduzida, assim
como muitas outras, pelas facilidades para ludibriar a burocracia
federal.
—
* Para a Papel Social. LĂșcio Lambranho Ă© jornalista. Foi repĂłrter no Correio Braziliense e no Jornal do Brasil. Recebeu menção honrosa no PrĂȘmio Vladimir Herzog
por reportagens sobre trabalho escravo publicadas no site Congresso em
Foco. No mesmo portal, foi um dos responsĂĄveis pelas reportagens sobre a
farra das passagens aĂ©reas, sĂ©rie jornalĂstica vencedora do PrĂȘmio Embratel de Jornalismo Investigativo e do PrĂȘmio Esso de Melhor Contribuição Ă Imprensa em 2009.
Fonte: http://papelsocial.com.br
0 comentĂĄrios:
Postar um comentĂĄrio