quarta-feira, 25 de abril de 2012

A triste fraude do projeto Tamar



Por LĂșcio Lambranho*.

O Governo Federal pediu o bloqueio de bens do Projeto Tamar e o cancelamento do certificado de filantropia. Motivo: a fundação criada para proteger as tartarugas pagou para que um integrante do Conselho Nacional de AssistĂȘncia Social (CNAS) e um advogado fraudassem a concessĂŁo do documento que dĂĄ Ă  entidade o direito de ser filantrĂłpica. Houve atĂ© falsificação de provas.

 As tartarugas voltando para o mar apĂłs a desova, salvas do risco de extinção, sĂŁo a marca registrada do projeto Tamar desde 1980. Mas a imagem positiva de preservação da natureza Ă© bem diferente dos fatos narrados em uma ação produzida pela Advocacia Geral da UniĂŁo (AGU).

O processo, que tramita na Justiça Federal, revela fraudes e irregularidades na concessĂŁo do tĂ­tulo de entidade de assistĂȘncia social, o que daria ao Tamar uma isenção milionĂĄria de impostos.

No documento, a AGU pede o bloqueio de bens, o cancelamento do certificado de filantropia e a condenação da entidade por improbidade administrativa. A ação tem como base as conversas telefĂŽnicas gravadas e documentos apreendidos na Operação Fariseu, investigação iniciada ainda em 2005 por PolĂ­cia Federal, Receita Federal e MinistĂ©rio PĂșblico Federal.

A apuração levou Ă  prisĂŁo dois consultores contratados pelo Tamar ainda em março de 2008. Agindo nos bastidores do Conselho Nacional de AssistĂȘncia Social (CNAS), o advogado Luiz Vicente Dutra foi flagrado pelas escutas dizendo que estava “com quatro conselheiros do CNAS” e ia “vender as tartarugas”.
O outro contratado pela entidade foi o entĂŁo suplente de conselheiro do CNAS, Euclides da Silva Machado. Uma das principais provas da acusação Ă© uma carta enviada por ele para o entĂŁo diretor da Fundação Tamar, Victor Partiri, aonde o conselheiro diz que “o Tamar por si sĂł, nĂŁo pratica comprovadamente assistĂȘncia social”.

No mesmo documento, o conselheiro då a dica de como deveria ser a transformação para conseguir o certificado.

O primeiro ponto foi incluir as visitas dos turistas Ă s bases do projeto no litoral brasileiro como atendimento gratuito para fins de assistĂȘncia social. AlĂ©m disso, foi criada uma manobra contĂĄbil onde passaram a considerar como gratuidade todas as despesas com mĂŁo-de-obra das rendeiras contratadas pela fundação para confecção dos suvenires.

Para os ĂłrgĂŁos de fiscalização, a decisĂŁo dos conselheiros do CNAS era tĂŁo absurda que em menos de um mĂȘs a Receita Federal encaminhou um recurso ao MinistĂ©rio da PrevidĂȘncia Social para pedir o cancelamento do ato.

Nos trĂȘs anos (2003 a 2005) em que o Tamar pedia para que fossem consideradas suas atividades de assistĂȘncia social, a entidade faturou mais de R$ 31 milhĂ”es com venda de brindes com a marca do projeto. SĂł este fato, segundo a Receita, jĂĄ afastava qualquer possibilidade da fundação ser considerada filantrĂłpica, pois a maior parte do dinheiro nĂŁo foi aplicado em açÔes sociais.

O CNAS não tinha corpo de auditores para analisar livros contåbeis das instituiçÔes. Concedia titulaçÔes com base no que era apresentado pelas entidades. Além disso, o próprio conselheiro Machado, que deu as dicas para a obtenção do certificado de filantropia, firmou um contrato com o Tamar, contrariando frontalmente o conselho de ética do CNAS. Os documentos mostram que Machado recebeu, por meio de sua empresa, R$ 29.400 do Tamar.

Isenção generalizada
Com o certificado de assistĂȘncia social, hospitais, escolas e faculdades privadas obtĂȘm vantagens fiscais que as livram de pagar milhĂ”es aos cofres pĂșblicos, na forma de tributos.

O principal dos benefĂ­cios Ă© isenção total da cota patronal do INSS. De acordo com as investigaçÔes do governo e do MinistĂ©rio PĂșblico, somente em 2007 a isenção concedida a sete mil entidades deu um prejuĂ­zo aos cofres pĂșblicos de R$ 2,1 bilhĂ”es.

As fraudes são gigantescas e antigas. A força-tarefa montada para apurar os crimes revisou isençÔes concedidas desde o final dos anos 90.

A Receita e o INSS dizem que as entidades beneficiadas nĂŁo tĂȘm o direito de requerer o certificado de assistĂȘncia social, pois nĂŁo cumprem as 11 obrigaçÔes necessĂĄrias para a obtenção do registro. A principal delas Ă© a que obriga as instituiçÔes a oferecem, pelo menos, 20% de serviços gratuitos nas ĂĄreas de educação e assistĂȘncia social e 60% na ĂĄrea de saĂșde. Os percentuais sĂŁo calculados sobre a receita bruta das entidades.

Fraudes ou inclusão de serviços, que não são considerados filantropia para se atingir esses percentuais, são comuns entre os processos investigados, como foi o caso do Tamar.

O projeto ambiental e as supostas entidades de assistĂȘncia social jĂĄ tinham sido flagradas pela Receita Federal, que ainda na dĂ©cada passada pediu o cancelamento dos certificados.

As entidades acabaram sendo anistiadas em 2009, graças a polĂȘmica MP 446/2008, apelidada no Congresso Nacional de “MP da Pilantropia”.

A MP acabou sendo devolvida ao Executivo. Por isso, a ação contra a fundação ambiental também demonstra que hå uma contradição jurídica no governo federal. Parecer dessa mesma AGU considera que apesar de ter sido rejeitada por deputados e senadores, os efeitos da MP continuam valendo.

AGU preferiu não comentar a decisão de processar o Tamar e ao mesmo tempo garantir anistia para outras entidades investigadas pela Operação Fariseu. Alega que não pode se manifestar, pois o processo estå sob segredo de Justiça.

Priscila Wiederkehr, diretora administrativa do Tamar, informou que o projeto não gozou de imunidade e que a Receita Federal negou o pedido de isenção. A entidade não respondeu as questÔes sobre o processo enviadas pela reportagem, mas protocolou no final de 2010 um pedido para renovar sua certificação.

O advogado Luiz Vicente Dutra, flagrados pelas escutas da PF, disse que “todas as acusaçÔes sĂŁo infundadas e foram obtidas de forma ilegal por meio de escutas”.

A reportagem nĂŁo conseguiu contato com o ex-conselheiro suplente do CNAS, Euclides Machado, nem com seus advogados.  Em suas alegaçÔes no processo, ele diz que nunca escondeu o fato de prestar serviços ao Tamar e que nunca votou nem participou de pareceres para entidades com as quais mantinha contratos. O CĂłdigo de Ética do CNAS diz que “Ă© vedado prestar serviços de consultoria remunerada nos processo de registro e certificação das entidades de assistĂȘncia social, concomitantemente com o exercĂ­cio da função de conselheiro”.

Pilantropia
Baixada a poeira da crise política criada pela devolução da MP, o governo conseguiu aprovar um projeto que afrouxou ainda mais as regras. Trata-se da lei 12.101/2009. No artigo 31, a União decidiu que o direito à isenção das contribuiçÔes sociais poderå ser exercido pela entidade a contar da data da publicação da concessão de sua certificação.

Com a nova regra, não existe mais a necessidade de que a entidade peça o benefício em processo administrativos na Receita Federal e até evita que ela entre com açÔes na Justiça. Ou seja, mesmo sob suspeita, as entidades supostamente filantrópicas ganharam mais um benefício sem que se tenha causado nenhum alarde na imprensa e sem nenhuma implicação política como teve a MP 446/2008.

Acreditando agir acima de qualquer suspeita, o conselheiro Euclides Machado representava uma obra social destinada a ajudar idosos e doentes em BrasĂ­lia. Outros conselheiros envolvidos nas denĂșncias tambĂ©m atuavam como representantes de entidades assistenciais e religiosas. Por isso, a ação da PF foi batizada de “Fariseu”, por considerar que os envolvidos agiam como os “antigos indivĂ­duos que aparentam santidade, mas nĂŁo a tĂȘm”.

A inspiração dos policiais federais vem da passagem bĂ­blica: “Ai de vĂłs, escribas e fariseus, hipĂłcritas! Pois que sois semelhantes aos sepulcros caiados, que por fora realmente parecem formosos, mas interiormente estĂŁo cheios de ossos de mortos e de toda a imundĂ­cia”. A denĂșncia contra a Fundação PrĂł-Tamar revela o lado atĂ© entĂŁo obscuro de uma entidade considerada como um caso de sucesso de ação ambiental no Brasil, mas que parece ter sido seduzida, assim como muitas outras, pelas facilidades para ludibriar a burocracia federal.
* Para a Papel Social. LĂșcio Lambranho Ă© jornalista. Foi repĂłrter no Correio Braziliense e no Jornal do Brasil. Recebeu menção honrosa no PrĂȘmio Vladimir Herzog por reportagens sobre trabalho escravo publicadas no site Congresso em Foco. No mesmo portal, foi um dos responsĂĄveis pelas reportagens sobre a farra das passagens aĂ©reas, sĂ©rie jornalĂ­stica vencedora do PrĂȘmio Embratel de Jornalismo Investigativo e do PrĂȘmio Esso de Melhor Contribuição Ă  Imprensa em 2009.


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