terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

A violência crescia na mesma proporção da impunidade...

Por: Hélio Bicudo
 

Diante desse quadro, para sujeitar as PMs, na prática de crimes contra civis, à Justiça Comum apresentou, aquela CPI, projeto de lei à consideração da Câmara dos Deputados. Esse projeto recebeu emendas e substitutivos, que visavam a aperfeiçoá-lo. A Câmara, entretanto, por proposta do então deputado Genebaldo Corrêa, líder do PMDB, aprovou emenda aglutinativa, amplamente defendida pelo então deputado Ibsen Pinheiro, gozando à época de grande prestígio por ter comandado a batalha do impeachment do ex-presidente Fernando Collor, a qual ampliava a competência da Justiça Comum apenas para o julgamento dos "crimes dolosos contra a vida" cometidos por policiais militares. Sem qualquer justificativa mais racional, permaneceriam sob a jurisdição da Justiça militar das PMs os espancamentos, as lesões corporais, os homicídios culposos, as prisões ilegais, a tortura, a extorsão e o estupro, pois o que se pretendia era apenas camuflar a permanência do regime então vigorante de impunidade. Talvez, também, na expectativa de que o homicídio doloso obtivesse dos tribunais do juri a costumeira benevolência.

Apreciando o projeto, já no Senado, o então senador Cid Sabóia, que primeiro relatou a proposição, considerou sem maior sentido a restrição nele contida de apenas atribuir à competência da Justiça Comum o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, mas submeteu-se à fórmula aprovada na Câmara dos Deputados, pela urgência, segundo dizia, em retirar-se, desde logo, da competência da Justiça militar os homicídios dolosos. Mas em seu parecer, já admitia a necessidade de complementar-se essa decisão mediante a apresentação de novo projeto que viesse a ampliar a proposta que então submetia à Casa. Contudo, o projeto não teve andamento até que se nomeou o senador Roberto Freire para novo parecer. Este senador tentou restabelecer a idéia original contida no substitutivo apresentado na Câmara dos Deputados, que delatava os limites da competência da Justiça Comum, mas foi mais uma vez vencido na Comissão de Constituição e Justiça, pelo poderoso lobby das Polícias Militares...

Diante disso, apresentou-se ainda à Câmara um novo projeto, com a necessária abrangência, buscando solucionar outros problemas na equação civil-militar, não só os que desembocavam na impunidade, mas também considerados relevantes no equacionamento da matéria. A esse projeto as lideranças partidárias determinaram a urgência na sua tramitação, oportunidade em que o próprio Executivo federal procurou dar sua contribuição, surgindo dessa intervenção a redação final aprovada em votação nominal nos últimos dias de janeiro de 1995.

No Senado, a nova proposta teve tramitação urgente por solicitação da presidência da República. Aproveitou-se, contudo, da urgência para recusar o projeto e reativar o anterior, que acabou sendo aprovado, referendado pela Câmara e promulgado, transformando-se na lei nº. 9.299 de 7 de agosto de 1996.

O então senador Élcio Álvares, líder do governo, manobrou no sentido de abortar o projeto em questão para aprovar o anterior, retirado da gaveta onde então se encontrava. Esse projeto foi aprovado com alterações inaceitáveis, recusadas, afinal, pela Câmara, que aprovou, para evitar o mal maior, o projeto anterior, como subira ao Senado.

Posteriormente, apresentou-se um novo projeto na tentativa de racionalizar, ainda uma vez, essa questão de competência para o processo e julgamento dos crimes chamados de policiamento. Esse projeto teria passado tranqüilamente na Câmara dos Deputados não fosse a interferência do então assessor jurídico da presidência da República, o procurador federal Gilmar Mendes, ao formular proposta que ressuscitaria a Justiça militar das PMs na sua maior amplitude. Diante disso, as lideranças da Câmara acordaram num substitutivo que, parcialmente, atendia ao interesse público, mas permaneciam ainda no âmbito das Polícias Militares as apurações dos fatos delitivos praticados por milicianos. Com uma redação bastante defeituosa, o projeto foi aprovado na Câmara e remetido ao Senado. Neste, o então senador Josaphat Marinho ofereceu substitutivo, recuperando a idéia inicial de maior abrangência da justiça comum na investigação e no processo e julgamento dos crimes em questão. Não se sabe bem por que, mas é possível imaginar o que aconteceu: o senador Josaphat Marinho perdeu a relatoria na Comissão de Constituição e Justiça e o projeto foi entregue ao senador Edson Lobão que, pura e simplesmente, o engavetou. Redistribuído ao senador Iris Rezende, até hoje não se tem notícia do que aconteceu...

Este é apenas um dos aspectos da questão, quando se nota, o que depois se confirmou, o pouco ou nenhum interesse do governo federal em alterar o sistema policial, como um todo.

Ora, tendo em vista que o modelo de segurança pública oriundo da ditadura militar está inteiramente esgotado e não se sabe mesmo como a Constituição cidadã de 1988 o encampou, ofereceu-se, em 1992, à Câmara dos Deputados, projeto de emenda com o devido apoiamento legal, unificando as polícias num só organismo civil, com um segmento uniformizado para as funções de policiamento ostensivo e outro em trajes civis, para a problemática investigativa, com unidade de comando e carreira única, ensejando ao policial que deve iniciar suas atividades na rua, a possibilidade de alcançar - o que hoje não acontece - os postos mais altos da corporação policial, naturalmente depois de capacitar-se em cursos intermediários oferecidos pela própria polícia.

Esse projeto de emenda, que recebeu parecer favorável na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, não prosperou na Comissão Especial encarregada, segundo o Regimento Interno daquela Casa, de estudá-la, aprovando ou não, para, em conseqüência, submetê-la à votação no Plenário. Isto se deveu, substancialmente ao lobby misto PM/Exército, que impôs, primeiro, nomes comprometidos com a recusa do projeto, e depois o parecer do relator para rejeitá-lo. Para se constatar o que se acaba de afirmar, basta verificar os nomes que fizeram parte da aludida Comissão, a maioria comprometida com a estrutura atual da polícia. Recusada a emenda na Comissão, não foi levada a Plenário.

Posteriormente, o presidente da República, tendo em vista ante-projeto oferecido pelo governo do estado de São Paulo (Mário Covas), encaminhou nova emenda unificadora, entretanto, sem revelar por ela maior interesse, essa emenda caiu no esquecimento. Chegou-se a criar uma espécie de comissão especial, sem as qualificações legais indispensáveis para o normal andamento da emenda. As conclusões a que se chegou, apenas num exercício especulativo, caíram, também, no esquecimento. A situação permaneceu, pois, inalterada.

Não obstante, ultimamente, com a iniciativa das ouvidorias de polícia, juristas de São Paulo ofereceram à consideração dos Poderes Executivo e Legislativo um fundamentado projeto de emenda criando uma polícia única, com unidade de comando de caráter civil, emenda que contém os passos necessários à sua organização, determinando a instituição de uma verdadeira carreira unificada, com acesso condicionado ao permanente aperfeiçoamento do policial.

Vejamos. O projeto põe fim à dualidade na função policial, extinguindo as Polícias Civis e Militares dos estados, criando uma Polícia Estadual, instituída no prazo de dois anos a partir da extinção dos atuais corpos policiais. Em conseqüência, extinguem-se os tribunais e auditorias militares estaduais, submetendo-se, todos os policiais, à competência da Justiça Comum.

A nova polícia na conformidade proposta terá cinco graus hierárquicos, com um teto salarial máximo e mínimo, respeitando a diferença máxima de quatro vezes o menor salário.

Extingue-se, por outro lado, a fase inquisitorial do procedimento penal, ou seja, o inquérito policial, passando a investigação criminal a ser de responsabilidade do Ministério Público, que irá orientá-la, deixando porém o deslinde de crimes e a identificação de seus autores aos técnicos da polícia e aos setores científicos da criminalística, estes organizados em carreiras enquadradas no corpo funcional do Poder Judiciário.

Os corpos de bombeiros passarão a fazer parte do sistema de defesa civil, como, aliás, já acontece em vários estados da Federação.

O projeto permitirá que se aumente o número de policiais nas ruas, com melhor utilização de seu efetivo, instalações e equipamentos, tendo como conseqüência um melhor resultado na relação custo/benefício.

Com uma única escola de formação, com a realização de cursos de aperfeiçoamento e reciclagem de pessoal, a nova polícia será especificamente civil, pondo-se um ponto final à sua formação autoritária. Com esse modelo, encerrar-se-á aquele concebido para atuar no controle social da população mais pobre, excluída ou marginalizada, para uma polícia democrática, subordinada ao Poder civil.

Entretanto, não obstante o lançamento do Plano Federal de Segurança Pública, em maio deste ano (2000), não se fez a menor alusão à proposta. Prevaleceu o comodismo que, no caso, é o grande culpado pela permanência de um órgão público responsável por parcela apreciável da violência no país, seja pela impropriedade de sua atuação, seja pelas distorções geradoras dessa mesma violência.

Uma polícia criada para o enfrentamento bélico não poderia trazer senão índices cada vez maiores de violência contra os segmentos mais discriminados da sociedade, como os meninos e meninas de rua, os pobres, os negros, os homossexuais e toda a sorte de excluídos.

A recente pesquisa realizada em São Paulo, pela sua ouvidoria de polícia mostra o seguinte quadro: as eliminações pela Polícia Militar chegaram a 1.421 em 1992. Decresceram a partir daí, caindo para seu número mais baixo em 1993 (377). Daí em diante, oscilou entre 592 (1995) e 577 (1999), o que talvez se deva aos movimentos pela reforma do aparelho de segurança que ocorreram nesse período. Explico-me: diante das alterações propostas nesses quadros, a retirar o poder que os transformaram em verdadeiros "poderes paralelos" aos próprios governos estaduais, arrefeceu-se o seu ímpeto, para aparentar a aceitação de uma nova política que valoriza os direitos humanos. Todavia, a partir do instante em que novas perspectivas de mudança não ocorriam, pois o projeto sobre a ampliação da competência da Justiça Comum, para o julgamento de policiais militares que tivessem cometido crimes de policiamento estava e está engavetado no Senado Federal - e a chamada reforma do Poder Judiciário incorpora a Justiça Militar das Polícias Militares dos estados como órgão desse Poder e com isso anula os avanços obtidos na supressão da competência da Justiça militar das PMs para o processo e julgamento dos crimes de policiamento -, os números pularam para 489, somente no primeiro semestre deste ano (2000), o que indica um crescimento de 77% com relação à mesma época do ano anterior. Dessas mortes, 449 são de autoria da Polícia Militar e 40 imputadas à Polícia Civil.

Permanecendo a média, poderemos chegar, ao final do ano com cerca de mil mortos, marca que não tínhamos em São Paulo, desde 1992.


Por outro lado, as estatísticas nacionais demonstram a "preferência" da polícia pelos excluídos: em 1997 foram eliminados 1.396 marginalizados no país, número que cresceu para 2.986, no ano seguinte.

Meninos e meninas entre 10 e 19 anos também compõem um contingente apreciável. De 457 homicídios nessa faixa etária em 1997, passaram para 737 em 1998.

Os negros ganharam longe nessa macabra competição: de 290, em 1997, vão para 614 no ano seguinte.

Os homens compõem o maior contingente: de 2.028 eliminados em 1997, passam para 3.157 em 1998. Quanto às mulheres, os índices são bem mais baixos: em 1997 são eliminadas 1.054 mulheres, número que vai para 1.327 em 1998.

Como se vê, o poderio de nossa polícia - a que tem maior efetivo é a militar, com mais de 300 mil homens distribuídos pelos vários estados da Federação - volta-se contra a população mais humilde e marginalizada. E isto decorre, sem dúvida, da vocação da Polícia Militar, institucionalmente organizada para atuar com violência na sustentação de um Estado de viés autoritário.

A mudança que se impõe aparece clara aos olhos de quantos querem ver. Entretanto, como aqueles que preferem não ver detêm os cordéis do Poder, vamos ficando com uma polícia que não oferece ao povo senão insegurança e violência.


Hélio Bicudo é advogado e jornalista. Foi promotor-público, procurador da Justiça em São Paulo e chefe de gabinete do ministro da Fazenda Carvalho Pinto (1963). Membro-fundador da Comissão Justiça e Paz de São Paulo e membro da Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos. Deputado Federal pelo PT-SP (1990-1998). É autor, entre outros, dos livros Do esquadrão da morte aos justiceiros (1988), Violência: o Brasil cruel e sem maquiagem (1994), Direitos humanos e sua proteção (1998).

Fonte: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142000000300010

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